Por trabalhar na Justiça Eleitoral, evito citar nomes de políticos e/ou partidos políticos brasileiros (embora eu pudesse fazê-lo sem problema algum, pois sou um cidadão como outro qualquer: o Código de Ética do TRE/RJ não tem vedação nesse sentido, porque o fato de ser servidor público não retira minha liberdade de expressão).

domingo, 16 de setembro de 2012

Quem não tem colírio usa óculos escuros
(ou "Lei da Ficha Limpa: nos interessa o que não foi impresso")

OBS: agora que muitas situações referentes às eleições em Campos já estão sendo ampla e abertamente discutidas, tento dar alguma contribuição. Não o fiz antes para que ninguém dissesse que eu estava a insuflar as pessoas a pensarem deste ou daquele jeito, mas como vários operadores do Direito e blogueiros já se manifestaram sobre o tema, a discussão já tomou conta da internet e por isso levanto algumas questões jurídicas a respeito.
Como sempre, não cito nomes, só falo de Direito e em tese, nunca da situação particular de candidato ou partido (embora como cidadão eu pudesse fazê-lo). Além disso, uso apenas entendimentos do TSE. Por isso, favor não inventar que estou a perseguir ninguém, ok?

A Lei da Ficha Limpa é tida por muitos como a moralização da política no Brasil. É... pode ser... mas ainda precisamos ver o grau de firmeza que os Tribunais Superiores usarão na aplicação da mesma e para tanto precisamos aguardar um pouco mais.

Porém, um olhar jurídico mais apurado nos deixa perceber que algumas providências deixaram de ser tomadas quando da aprovação da Lei da Ficha Limpa e por causa disso é que em muitas cidades do país reina um clima de dúvida e absoluta instabilidade quanto às eleições vindouras.

Não é de hoje que questiono o excesso de individualismo de nossa Constituição. Explico: como em 1986 tínhamos acabado de sair de uma ditadura militar, a Assembléia Nacional Constituinte quis resguardar algo que era deixado de lado pelos militares: o direito do cidadão. Bom que assim tenha feito, evidentemente... mas penso que a Constituição de 1988 (e os Tribunais, ao interpretá-la) errou na mão e é exatamente por causa disso que em alguns casos o direito de centenas de milhares de eleitores de saber em que candidatos poderão de fato votar acaba sucumbindo ao direito de dois ou três de manterem suas candidaturas mesmo sem registro das mesmas.

Mas afinal de contas, o que não foi feito quando da aprovação da Lei da Ficha Limpa? Basicamente duas coisas:

1 - deveria ter ocorrido a revogação do art. 16-A da Lei Eleitoral, que permite ao candidato manter a campanha quando tiver o pedido de registro indeferido e ao menos usa a expressão "por sua conta e risco" como fazia o TSE. Leiamos: 
 
Art. 16-A. O candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior.


Sobre o tema o TSE decidiu da seguinte forma há pouco mais de um ano (Ac.-TSE, de 30.6.2011, no MS n° 422341):  

“Havendo a confirmação do indeferimento do registro, pouco importa a situação do registro do candidato – deferido ou indeferido – no dia da eleição [...]”; “o art. 175, § 4°, do CE foi revogado pelo art. 16-A, parágrafo único, da Lei 9.504/1997”.

Observe que neste caso causa estranheza o fato de que o simples requerimento do candidato vale mais do que uma sentença proferida por um Juiz ou um acórdão lavrado por um Tribunal (é como se tal artigo presumisse que todo membro do Judiciário persegue candidatos...).

Se a Lei da Ficha Limpa tivesse acabado com esse absurdo, quem fosse nela enquadrado não poderia fazer campanha ou participar de debates e não teria seu nome inserido na urna enquanto não conseguisse o registro e este sim é o anseio da sociedade brasileira.

2 - Faltou proibir que o candidato tido como "ficha suja" que renuncie às vésperas das eleições possa colocar outra pessoa em seu lugar . Isso é legal, embora seja imoral.
Deveria a Lei da Ficha Limpa ter modificado a redação do art. 13 da Lei 9.504/97 (Lei Eleitoral - editei alguns trechos):

Art. 13. É facultado ao partido ou coligação substituir candidato que for considerado inelegível, renunciar ou falecer após o termo final do prazo do registro ou, ainda, tiver seu registro indeferido ou cancelado.
§ 1o  (...) o registro deverá ser requerido até 10 (dez) dias contados do fato ou da notificação do partido da decisão judicial que deu origem à substituição.
..........
§ 3º Nas eleições proporcionais, a substituição só se efetivará se o novo pedido for apresentado até sessenta dias antes do pleito.

Como a lei só estabeleceu prazo para substituições de candidatos às eleições proporcionais (no caso, para Vereador) e não para as eleições majoritárias (nesta eleição para Prefeito), conjugando-se o artigo em tela com o já citado art. 16-A acima conclui-se que é possível sim a substituição de candidato que renuncie à disputa, mesmo que próximo ao dia da eleição, como vemos em decisão do TSE datada de 06/12/2007 (REspe n° 25.568):

“Observado o prazo de dez dias contado do fato ou da decisão judicial que deu origem ao respectivo pedido, é possível a substituição de candidato a cargo majoritário a qualquer tempo antes da eleição (art. 101, § 2°, do Código Eleitoral) [...]”.

Veja o que o TSE previu no art. 137 da Resolução 23.372/11, que trata da votação e totalização:

"Ocorrendo substituição de candidato ainda sem decisão transitada em julgado, serão computados para o substituto os votos atribuídos ao substituído."

Mas, apenas a título de argumentação, conside-se que em algum lugar do país possa existir alguém que queira beneficiar-se da própria torpeza e, sabendo-se há muito inelegível deixe para renunciar às vésperas da eleição, sendo ser substituído na calada da noite. Pergunta-se: o que fazer se a renúncia do candidato ocorrer após a inseminação das urnas, às vésperas da eleição?

A solução está na Resolução 23.373/11, também do TSE, que dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos e prevê nos parágrafos 4º e 5º de seu artigo 67:

"Se ocorrer a substituição de candidatos a cargo majoritário após a geração das tabelas para elaboração da lista de candidatos e preparação das urnas, o substituto concorrerá com o nome, o número e, na urna eletrônica, com a fotografia do substituído, computando-se àquele os votos a este atribuídos".

§ 5º Na hipótese da substituição de que trata o parágrafo anterior, caberá ao partido político e/ou coligação do substituto dar ampla divulgação ao fato para esclarecimento do eleitorado, sem prejuízo da divulgação também por outros candidatos, partidos políticos e/ou coligações e, ainda, pela Justiça Eleitoral, inclusive nas próprias Seções Eleitorais, quando determinado ou autorizado pela autoridade eleitoral competente.


Assim sendo, embora a Lei da Ficha Limpa tenha deixado brechas para fichas-sujas e mesmo tendo deixado de revogar alguns artigos da Lei Eleitoral que dão margem a confundir o eleitor, se alguém pelo Brasil afora quiser tentar uma bruxaria jurídica substituindo o candidato na calada da noite, deve levar em consideração o espírito moralizador da Lei da Ficha Limpa e que estamos em tempos de internet e que os demais partidos e a própria Justiça Eleitoral podem divulgar tal fato, o que talvez seja mais complicado do que usar óculos escuros por não ter colírio...

Fonte: Brasil. Tribunal Superior Eleitoral.
______. Normas e documentações - Eleições 2012. On line, 2012.

OBS: "Quem não tem colírio usa óculos escuros" é o refrão da música "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas e Paulo Coelho, gravada pelo primeiro em 1973.
OBS 2: "Nos interessa o que não foi impresso" é um dos versos de "O Exército de um Homem Só", de Humberto Gessinger e Augusto Licks, gravada pelos Engenheiros do Hawaii no disco "O Papa é Pop", de 1990.

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